terça-feira, 30 de abril de 2019

AMANHECI SAUDADE

por Inajá Martins de Almeida

O ato de ler, em mim, proporciona conjecturas várias. Um cafezinho na cama, a brisa suave que adentra janela entreaberta, o sorriso terno que me enleva o sentido do prazer do amor, daquele amor que me amanhece saudade. 

A foto, abre um parêntesis e se manifesta no espaço que requer o registro. Intacta ante a ótica virtual, a tela consumida fora pelo tempo. A memória, assim,  reproduz em imagem aquele pequenino quadro que em pó se tornou, fragmentado ante a fragilidade da sua composição



A saudade em mim amanhece e ao me remeter a leituras de um distante passado, volto a perceber que o presente não repõe ausências - o passado me direciona a um presente que busca por linhas ao não esquecimento. 

Ao rememorar lembranças vividas, encontro um presente repleto de lirismo e cor. O mesmo suave gozo de um tempo que o próprio tempo não quer se distanciar e o trago diante de mim, num vai e vem das letras que se encontram e se formam harmoniosas, ante o tic tac do teclado que me representa. 

Quantas vezes fantasiosa a palavra, pulsa e vibra ao sabor de duras penas; aquela - palavra - que dá vazão e razão ao tema que clama em mim, e recorro  ao meu sentir maior e passo a transpor para estas linhas a saudade que jorra em mim.

E se amanheci  saudade, aquela que amanhece em mim nesta jornada que mais e mais se transforma em saudade, passo a vislumbrar num presente, que me torna profícua aos dias vindouros, que, se não fora essas lembranças suaves e ternas de um envolvimento entre livros e cores, não haveria saudade para ser memória. 

Memória que se torna saudade numa manhã que me clama às linhas e as teço em mim, ao mesmo tempo em que me enternecem as lembranças que adormecem num desejo ardente pelo reencontro.

Quiçá ilusão. Quiçá fantasioso à poetisa que encontra motivo para as rimas desconexas que a escrevem, num sussurro que se abafa entre linhas a expressar saudade, numa manhã, que já se alonga no tempo, este que não se cansa em registrar o compasso audacioso que lhe fora imputado e que acatamos em nossas manhãs; manhã, que logo se transformará em tarde em noite e em  novas manhãs, com a mesma saudade a se multiplicar.  


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"Janelas para o horizonte" - Tela em acrílico (10x20cm ) por Élvio Antunes de Arruda


segunda-feira, 15 de abril de 2019

UMA CANETA NOS CONTEMPLA

por Inajá Martins de Almeida

Uma caneta nos contempla e nos remete a nossas memórias; lembranças que podemos escrever; memórias que nos compõe; memórias que compomos quando uma caneta nos escreve por meio de nossas mãos.

Passei a perceber o valor de uma caneta, no instante em que escrevia. 

Retomei o passado e o desejo imenso por ter uma em meu estojo, agigantava-se em mim.

Sonho de menina que esboçava as primeiras letras em cadernos brochura, ora caligrafia, ora desenho, ora para os apontamentos diários - justificava o não poder subtrair páginas os tais brochura. O lápis consentia à borracha, apagar erros cometidos; os cadernos deveriam estar aprumados, bem organizados; suas linhas e páginas com o mínimo ou nenhum rabisco; amassados, nem pensar, orelhas em suas pontas inadmissíveis. Ainda hoje eles me atraem e vez ou outra os tenho perto. Lápis preto o indicado para as tarefas; coloridos para os desenhos. Impossível pular etapas – canetas viriam mais a frente. Ufa, quanta exigência para uma pequena que se esmerava no ofício das letras... 

Mas, como era gratificante ver os cadernos arrumadinhos, encadernados, pelas mãos suaves e delicadas da mamãe, com papel de seda coloridos entrarem e saírem de  mochilas como se fossem a passeios entre a casa, escola e vice-versa.

Nos finais de semana contudo, eram os cadernos levados pela professora que os portava nos braços com zelo e carinho, como seus próprios filhos,  para receberem anotações em suas páginas. Ansiosos aguardávamos o retorno, na expectativa de um parabéns, ótimo, bom, regular, você pode melhorar...


Este era o início do letramento. Brincadeiras muitas. Aprendizado. Alfabeto. Números. Contas básicas - soma, adição, subtração, multiplicação. 

A cartilha nos apresentava um Caminho Suave, a outros juntava-se os Amigos de Pedrinho. Tempo em que versávamos semanalmente entre a composição, dissertação e narração; anos que nos encaminhava o curso primário, com vistas ao ginásio, e como ansiávamos pelas etapas - oito anos que contávamos em júbilo crescente em conhecimento, aprendizado e prazer pelo estudo que jamais se apartaria de alguns, em especial  desta que escreve.

Que vontade me dá, retornar aquele longínquo passado repleto de sonho e encantamento pelo aprendizado; rever antigos colegas que o tempo não preservou. Estas linhas me tornam possíveis o resgate.

Mas eis que a perspectiva de uma caneta encontraria eco nos anos vindouros, quando então se poderia escrever com uma caneta tinteiro. Ainda não tínhamos as esferográficas. Meu pai era cuidadoso em preservar as tinteiros, dizia que o escrever era uma arte e que deveríamos primar em portar uma caneta que desse identidade ao nosso escrever. Mas o sonho da esferográfica ficaria latente; quando alguma colega exibia suas quatro, cinco cores numa mesma caneta, uma pontinha de desejo batia forte no peito.

Nas carteiras um pequeno espaço era então reservado para as tintas. Cada qual poderia trazer o seu vidro e  colocar ali, quando necessitasse, sempre com a recomendação da professora, para não sujar a roupa, a carteira, o caderno, as mãos - nem sempre possível. 

Incríveis lembranças que o tempo torna presente. 



As canetas esferográficas só adentrariam nossos hábitos e costumes quando estivéssemos no ginásio. Era a década 1960 que prenunciava anos para a formação que me levaria aos livros.



Canetas me foram presenteadas pelo pai zeloso pela escrita. A primeira uma sheaferr cinza, minha paixão guardada por muitos anos, a outra parker 51 preta com tampa dourada, também tinteiro. Não me contive e me rendi às imagens em captura. Mudanças várias, entretanto, momentos outros, apartaram-me dessas que me acompanharam numa jornada tão significativa. Distantes nesses mais de cinquenta anos,  a memórias almeja o sentir o toque daquelas que se perderam em algum instante e local que não se conta, contudo impossível; fico apenas com o resgate da imagem que se assemelha.

Assim, hoje a modernidade nos torna práticos e uma esferográfica condiz às nossas necessidades prementes. Também, quantas vezes nossos apontamentos se fazem diretamente no teclado de um computador, sem passarmos pelos brochuras, lápis, esferográficas, borrachas. A teclado nos agiliza, a tela tudo permite - cortar, apagar, acrescentar.

Tempos outros em que, ao contemplar uma caneta, pude me encontrar com minha infância e adolescência, minhas memórias mais significativas de um tempo que o tempo não apaga da lembrança, agora mais ainda, transposto para estas linhas.  

Ao término deste texto, o qual me fora tão prazeroso revolver um passado tão presente em meu questionar, a galáxia internet me proporcionou o contato com belíssimo trabalho acadêmico da professora doutora em educação pela Faculdade de Educação da USP, Wiara Alcântara, sob título "A transnacionalização de objetos escolares no fim do século XIX", donde pude capturar imagens de carteiras as quais poderiam representar aquelas que me levaram aos primeiros ensinamentos escolares. Sentávamos em dois, muitas das vezes um menino e uma menina, para ordem e disciplina. No ginásio as carteiras eram individualizadas. Ambas possuíam compartimento para guardar nossos pertences sob a mesinha e o orifício para os tinteiros. 

confira o trabalho em 
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-47142016000200115  


sábado, 6 de abril de 2019

ERA UMA VEZ

por Inajá Martins de Almeida
“Era uma vez”, amanheci.

Saí dos contos infantis; adentrei minha envelhecência. A bagagem dos anos vividos proporcionou-me contato com a realidade que as histórias maquiam: - “e foram felizes para sempre”, como se o ser feliz imputasse condição sine-qua-non para a vida plena.

Hoje aos sessenta e nove anos me sinto jovem para ser velha, ao mesmo tempo em que a idade me condiciona a uma realidade que não condiz com o ser jovem. Posso então dizer que me sinto jovial na plenitude dos meus anos.

E a linha do tempo me faz retornar aos anos de leitora in potencial e ao letramento; aos livros, a pouca idade me conduzia. Nossa biblioteca, generosa em volumes, enlevava-me à paixão que se perpetuaria aos anos vindouros – eu os amava. Mesmo não tendo entendimento para seu conteúdo, suas capas me atraiam, suas gravuras me encantavam. Era o livro que me capturava o pensar que se transportava para um universo ainda distante do meu entender criança. 

Assim é que “era uma vez” uma menina que amava tanto os livros, que não pudera almejar profissão mais adequada do que a de Bibliotecária. Iniciava-se ali um comprometimento fiel entre os livros que se deixariam selecionar, analisar, classificar, catalogar, organizar, enfim... Escrever...

Todo esse processo crítico avançaria espaço e tempo a conduzir leitora aos próprios apontamentos: como separar leitura da escrita? Não condiz.

Sob minha ótica, o escrever, complementa-se à leitura; para o autor imaginar seu livro referenciado, recontado, indicado, transformado em outro texto, seja a consagração maior para sua inspiração e transpiração. Claro que não o plágio.

Assim é que “era uma vez” uma menina que amanhecera entre contos de fadas, que brincava de ser leitora e escritora, na lousa, com giz escrevia:

Entre livros nasci
Entre livros me criei
Entre livros me tornei.
Enquanto lia o livro
Lia-me, a mim, o livro.
Hoje não há como separar:
O livro sou eu!
Ademais
Bibliotecária por opção, paixão e convicção
Escritora por transpiração.


Assim ao imaginar o "foram felizes para sempre" em "era uma vez", pude me perceber ao sair das páginas do livro e adentrar meu próprio universo, nesta página virtual e tão real.