terça-feira, 23 de dezembro de 2014

SOBRE "LADRÕES DE PALAVRAS" - Michel Schneider


Por Inajá Martins de Almeida

Há livros que falam por nós. Falam de nós. E, principalmente falam para nós. Escrevem-nos. Revelam-nos intimidades incontidas. Compartilham intimidades.

Ah! Suspira o leitor ao encontro. Ah! Suspira o livro ao leitor.

Ladrões” sorrateiros às “palavras(1) encontram eco. Bailam. Rodopiam no grande e infinito salão da mente.  “Leitor do outro(2). É quando sentimos a necessidade da escrita. Quando então o autor nos diz que “escrever é ocupar um lugar... dizer o que aconteceu”(2).

E queremos realmente dizer o que nos trouxe o encontro. O que nos levou ao encontro. O sonho que adentrou o sono. Sorrateiro. Fantástico. Pensamento que se fez consciente no inconsciente noturno. A sala de aula. O professor a indicar a leitura. A jovem partícipe da questão em detrimento aos ausentes, tantos, que não podem se perceber ao enunciado daquele que compactua o autor. Era o livro que, à cabeceira da cama não descansava. 

É o livro, agora, que se transforma em  “ladrões de palavras”(1) . Forma frases. Permite-se escrever “tantos outros livros, como se tivesse sido, pouco a pouco, tragado”(3).  

E pode-se voltar ao encontro não planejado. Não programado. E à reflexão, mente, alma e coração sentem mãos invisíveis que conduzem ao ensinamento maior, quando leitor silente observa, obedece à voz interior e aguarda a colheita.

A grande livraria, centro da cidade, abriga títulos incalculáveis. A promoção chama atenção para si. Ditames do saber incontido, passo a passo, observam os passos firmes do leitor in potencial, que sobe pequena escada de pedras mármore e adentra aquele santuário.

A mesa abriga títulos a se perderem na vista do leitor. Um, selecionado, é deixado à margem. Volumosas páginas a se contarem em quinhentas, chamam atenção. Parágrafos, palavras, vasta bibliografia não condizem com o valor ínfimo a que se propõe a oferta – a mente vem.

Há que se pensar então nas horas investidas à pesquisa. No tempo dedicado ao estudo à coleta de informações.  No autor até então desconhecido. É digno o preço? Mas vamos lá! Conjeturas a parte.   

Assim, leitora que acostumada fora a tantos títulos, tantas bibliotecas, agora se vê impasse ante aquele que começa a lhe tragar o sentir pleno e mágico da leitura. Percebe, leitora,  que “cada livro é o último e o primeiro”. (4).  Livro que lhe ofusca a mente em delírios frenéticos. Se primeiro fora, o impacto das gravuras trariam colorido às palavras. Porém, percebe-se o último ante as palavras que se avolumam, negras, quebrando o branco do papel.  

Volta-se às Leis da Biblioteconomia e encontra Ranganathan a lhe dizer que a cada leitor o seu livro e a cada livro o seu leitor. E percebe o zelo. O cuidado. O cuidar da bibliotecária que jamais pode se apartar dos ensinamentos primeiros. E a técnica que não se distancia da Técnica pode resgatar da memória habilidade adquirida no passado, na presente atitude.  

Fora então o encontro. E as páginas registram:

“O encontro do autor com “seu” leitor – quem pertence a quem – tem muito do encontro às cegas em que, cada um, crendo se interrogar sobre o outro, na verdade espera que este lhe diga sua própria identidade” (5)            

Mas, agora, de posse do livro, a noite de insônia saudável é a leitora que questiona:

 –Quantas vezes os livros nos bastam! Quantos autores podem nos escrever! Daí, o que  dizer dos livros interiores? Quem os poderia escrever? Quem os tais, sabedores do silêncio noturno poderia expressá-los?

O tic-tac do relógio que, compassado, segue ininterrupto seu ciclo diário? Horas infinitas de momentos em movimentos podem trazer à pena e ao papel a expressão de vistas ao ponto? Ou até, quem sabe, paredes brancas a observarem, mudas, frias, taciturnas, podem registrar o segredo daquele encontro.

Quem sabe? Quem o pode saber?

E entende – leitor – que ninguém senão ele próprio possa ser o protagonista das horas silentes de vigília. E fora o livro – o último – que lhe encaminhava às reflexões. Roubava-lhe o sentir leitor. Enveredava-o às palavras. Instigava-lhe o escritor latente ante as palavras que aos poucos se descobria. Centenas? Milhares? Palavras bem colocadas. Formatadas ao esmero do autor. Citações emprestadas. Composições articuladas, enfeitadas aos moldes literários impecável ao olhar atônito do leitor que encontra eco mediante palavras roubadas. Melhor ainda, não se ruborizam ao compactuar “ladrões de palavras”, tantos.

E segue leitor a leitura. Agora o livro. Mas, as estantes, em fileiras ordenadas, deixam para trás de si ecos de tantas outras leituras. Palavras a se perderem de vista. Livros que não se bastam. Livros que não nos bastam. “Livros... Livros... A mão cheia... Grita o poeta”. (6)

É a vista do leitor que encontra no ponto final do autor, na obra acabada, caminhos para compor a jornada que se abre, deixando acesso livre ao pensamento, que agora se apossa do leitor. Mundo das ideias a permear espaço e tempo. (7) Dimensão de que possível se torna escrever tantos pontos quantos forem os pontos que a vista possa alcançar.

É o ponto final da obra do autor que propicia a nova obra no leitor. “O leitor do outro”. (8)  E, como se pode sentir latente o desejo mórbido pela escrita, gavetas são revolvidas em busca dos papéis. Papéis de lembranças.

Papéis velhos, pontilhados de palavras. Papéis novos, pontilhados de esperança. Folhas em branco a representarem novos papeis. Retalhos amealhados. Retalhos de cetim. Retalhos de algodão. Retalhos de lã. Retalhos de seda. Retalhos de sede. Retalhos do escritor. Retalhos do leitor. E escrevemos, porque na escrita sentimos a liberdade que nos leva além das paredes. Liberdade que as palavras proporcionam leva-nos aos encontros.

E sentimos um quê de saudade. Um quê de alegria. Um quê de desejo pela obra que não é nossa, mas que tão bem pudera ser. Palavras que poderiam ser por nós escritas, porque tão bem nos escrevem. E nada de novo, porque tantos pensaram. Tantos pensam. Tantos escrevem. E lemos nos outros, o que os outros lêem em nós. Estranho. Quantos gostariam de escrever o que escrevemos. Quantos escrevem o que gostaríamos de escrever.

Tornamo-nos, assim, “sósias” (9) dos que escrevem. Discordantes de pontos de vista, não nos distancia da obra. Ao contrário propiciam criar pontes. É o livro que toma seu lugar. (9)

E rimos. E choramos. E o coração transborda ao encontro. E, ao invés de ficarmos “ressentidos"(9) pelo que o autor escrevera, sentimos uma alegria imensa por nos encontrarmos em suas linhas.
E “nas margens do livro”(10) escrevo para que eu mesma possa ler algum dia:

- Não podemos modificar a natureza da palavra, mas amoldá-la para que ela possa se amoldar à sua natureza: a natureza do escritor. Cada qual ao seu modo. Roubando. Tomando emprestado. Plagiando. “Ladrões de palavras”.



  1.      Ladrões de Palavras.   Michel Schneider”.  
  2.      Idem – pág. 404
  3.      Idem – pág. 139
  4.      Idem – pág. 10
  5.      Idem – pág. 15/16
  6.      Castro Alves (* - observação da autora do texto)
  7.      http://pt.wikipedia.org/wiki/Teoria_das_ideias (* observação da autora do texto)
  8.      Idem- pág 404
  9.      Idem pág 428
  10.     Idem pág. 481


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SCHNEIDER, Michel.  Ladrões de palavras: ensaio sobre o plágio, a psicanálise e o pensamento.   Michel Schneider;  Trad. Luiz Fernando P.n.Franco.   Campinas, Editora da Unicamp, 1990.  (Coleção Repertório) 

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